Uma Noite de Novembro






Eram 21h e a Lua nova parecia ela própria querer evadir-se do céu. Estrelas?! Também não se avistavam pelo que restava o grande negrume do céu preto carvão. Para ele o céu parecia uma verdadeira pira aquela noite.

Chovia a potes. A água gelada caia do céu tal qual cascata, mas a ele isso era alheio. Sentia-se a arder de dentro para fora, sentia um ódio milenar a derreter as suas entranhas. O seu sangue pulsava em todo o corpo com um esplendor queimante e ele sentia cada vez mais vontade de ceder aos seus instintos animalescos.



Tinha a visão turva e a sua racionalidade, reduzida naquela noite, não o permitia distinguir se a causa era a raiva ou a chuva torrencial. Ele odiava todas as pessoas que julgavam que tinha uma vida perfeita, odiava ainda mais todas as razões que levavam a esse pensamento.



João tinha agora 35 anos, trabalhava num banco e ganhava uma excelente quantidade de dinheiro. A sua casa e o seu porsche falavam por si. Era casado com uma mulher lindíssima, bem sucedida e dedicada que lhe tinha dado dois lindo filhos. Odiava-se por aquilo não lhe ser suficiente.

Era rara a noite em que não sonhava que estava no banco, mas desta vez de arma em punho. Nos sonhos sentia o embater da arma na sua mão a cada disparo e o regozijo de cada vida ceifada. Sentia-se mais feliz e realizado que nunca, era o dono absoluto do mundo ao ver os seus colegas de trabalho com os olhos revirados e ensanguentados deitados no chão, mortos sem piedade. Depois de atirar em cada um deles ele roubava todo o dinheiro dos cofres e depois o carro do patrão. Ia para a ponte mais próxima, parando o carro no meio da estrada, sem se importar com quem quer que fosse, e queimava maços inteiros de notas, cuja cinza voava, acabando por cair no mar.

Quando acordava destes sonhos, parecia sentir um sabor ferro dos lábios, um sabor que lhe parecia um elixir da vida eterna. Sentia ainda todo o poder do sonho, mas à medida que o dia avançava voltava ao mesmo fosso de nada. Ao meio dia já se sentia novamente o homem mais miserável do Mundo.

Aquela noite ele dirigiu-se para essa Ponte. Abriu a mala do carro, retirou um contentor de gasolina, banhou-se com ele e acendeu o isqueiro. As chamas, num antagonismo demente, pareciam apagar o ódio dentro de si. Ele não sentiu dor, apenas viu a redenção e a felicidade até porque o cheiro da sua própria carne a ser queimada o fazia sentir dono de si, era como se pela primeira vez ele tivesse controlo sobre a sua vida pútrida.


Agora sim, a noite não estava mais escura. Havia uma luz negra no ar...

Comentários

Fleuret disse…
Belissimo texto, nos faz lembrar de que as coisas e acontecimentos da vida tem importância e significado diferente para cada pessoa.

Muitas vezes nos esquecemos disso e acabamos cobrando os outros. As vezes a alegria de um pode ser a angustia de outro.
Nelson Junior disse…
Esse é macabro...

Um gosto de morte misturado com cinzas... deixa o amargo da vida leve, se comparar com tudo que existe por aí...

Gosto desse pelo tom macabro...
Mas que dá medo, dá... ^^

Verin

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